sábado, 27 de setembro de 2008
Macabéa século XXI
<ensaios narrativos>
Acordou na quinta-feira fria sobressaltada com o despertador às sete da manhã, após dormir apenas três horas, como costumeiramente estava habituada a fazer. Não que não precisasse dormir, mas o tempo era tão curto e seu o hoje parecia sempre estar tão grávido de amanhãs.
Dona Aurora Vieiras, baiana de nascença, endurecida pela cidade grande, dirige-se toda manhã do apartamento popular da ACOHAB onde mora, no bairro Artur Alvim, até o centro da capital paulista onde vende suas mercadorias.
Aquele dia não foi diferente. Após lavar o rosto dirigiu-se até a janela da pequena sala com móveis antigos e viu com rotineira condição o que sempre enxergava dali: o céu nublado pela poluição vinda dos veículos e indústrias da metrópole.
Tentou ver algo de novo. Não conseguiu.
Tentou respirar um novo ar diferente daquele. Não conseguiu...
Tentou mudar o trajeto da casa para o trabalho. Desistiu e não o fez.
Ela já trabalhara em firmas de São Paulo, mas o emprego nos grandes centros urbanos não é fácil e a falta de especialização cuidou com que fosse retirada e excluída do seu posto de trabalho. E além do mais e do menos, que patrão hoje em dia aceitaria empregar uma mulher de sessenta e oito anos em sua empresa?
Após isso, dirigiu-se à cozinha onde tomou sua meia xícara de café amargo. O açúcar já faltava nas últimas semanas, como a alegria daquela época em que acordar no sítio e ir à missa aos domingos era uma realidade não tão longe de se alcançar.
Mas a vida a obrigara a estar ali. O emprego de vendedora na Rua 25 de Março era justificada para ajudar a pagar as despesas da casa e ajudar na sonhada educação dos netos.
Ao sair de casa naquele sábado tomou o ônibus em direção à sua barraca no coração do empurra-empurra de consumidores.
O ônibus demorou uma hora e vinte para chegar até lá e no meio do caminho lembrou-se do que assistiu na TV na noite anterior. A manchete dizia: Índice de percepção da Corrupção no Brasil se manteve estável em 2008.
Pelo que pudera entender a reportagem fazia uma comparação da corrupção no país com o ano anterior. Divulgando um dado que parecia condizer muito com sua realidade: o Brasil teria caído oito posições no ranking dos países que tem menor corrupção do poder público.
E pensou: as pessoas realmente não vêem.
Ao chegar no início da rua 25, enfrentou a rotina no mar de gente e pernas com passos apressados. Sempre a luta por entre braçadas e a conquista por um espaço com localização estratégica.
Afinal, o vai-e-vem tão paulistano e as lojas montáveis que dividiam o espaço com o trânsito era uma coisa que não era possível de passar despercebido.
As pessoas que vinham até ali em busca de algo barato e diferente.
Apesar da distância entre casa, emprego, família, descanso e memórias antepassadas, dona Aurora compartilhava consigo a nostalgia e a fé de algo que a pudesse tirar dali.
O sistema já lhe pesava nas costas com o passar dos anos. Mas lembrou-se do seu propósito de trabalhar dobrado para não ter de deixar que seus netos futuramente também precisassem trabalhar a passar dias a fio nas ruas vendendo muambas.
Foi trazida de volta à realidade por um rapaz baixo, moreno, provavelmente boliviano ou peruano, que gritava para sua freguesia a inovação do produto que carregava em mãos.
Uma coisa lhe era preocupação constante: a fiscalização policial.
Não que o que fizesse fosse o certo, mas foi uma alternativa que encontrou para sobreviver em meio a tudo àquilo. E depois, se havia um lugar para barrar os produtos contrabandeados nos países vizinhos não era ali. Por que não apreendiam tudo no porto de Santos?
Mas ela sabia como tudo funcionava e a corda sempre estourou mesmo para o lado do mais fraco. Não ia ser agora diferente.
Indignada ficava por saber que a polícia tinha a ciência que as lojas grandes que tinham prédio próprio na rua também adquiriam os mesmos produtos, com os mesmo fornecedores.
E pensou mais uma vez: as pessoas realmente não vêem corrupção.
Neste cansaço psicológico viu surgir à sua frente uma grande confusão de uma mulher que passava pelo local e, de repente, começara a gritar que um dos vendedores ambulantes tinha roubado seu celular. Um monte de gente se amontoou sobre a cena e o que era briga se transformou em espetáculo.
Pensara consigo: as pessoas de cidade grande sofrem de solidão e sempre sentem a necessidade de transformar os fatos em tragédia, pois tudo aquilo já se repetia um dia após o outro.
Eram tanto os dias...
Nos gritos de “devolve meu celular” a própria população providenciou com que o aparelho fosse devolvido pelo rapaz...
A polícia!? Ah, a polícia não apareceu, oras. A polícia nunca chega, a não ser para levar o pouco que cada um conseguiu juntar.
Não dava para ficar rico com um trabalho daqueles. O muito suor e muita luta davam apenas para sustentar a casa.
Aurora já trabalhava lá há dezoito anos naquele local. Sempre a mesma bagunça. Ela já sabia que a fiscalização era maior de segunda à quinta.
Entretanto, aquele dia ela bobeou. Como diria os vendedores “marcou touca e deu bandeira”. Em uma operação da Receita Federal, a Operação Anúbis, que vinha ocorrendo para diminuir o número de mercadorias sem nota fiscal naquela região, viu todas as suas mercadorias serem apreendidas. E junto viu as contas da casa se acumularem, o estudo de computação da neta se interrompido. Sonhos derrubados e desfeitos em pó.
Não, ela jamais vivia mais para si. Era para eles, netos e filhos. Mas nem isso conseguia mais. Era excluída econômica e socialmente e não existia para o governo. O dinheiro para pagar a multa e retirar a mercadoria não existia, nem nunca existiu algo naquele valor.
Dona Aurora sentiu-se intrigada. A falta de organização do poder público, a corrupção dos fiscais, a falta de dinheiro e a falta de esperança.
Poxa! Porque tirar dinheiro e explorar as pessoas que se matam de trabalhar por cem reais? Por que não ir ver que as grandes lojas dali também não pagam impostos sobre as mercadorias?
Sentiu mais uma vez o peso de todo um sistema em cima das suas costas...
Tentou ver algo de novo. E não conseguiu.
Tentou respirar um novo ar diferente daquele. Não conseguiu...
Tentou mudar o trajeto do trabalho para casa. Desistiu e não o fez.
Não agüentava mais.
E foi se encolhendo, tão pequenina, se encurvando, tão frágil, diminuindo, tão mísera. Á sua frente, ao seu lado, todos Gullivers, quando não muitos Golias em fúria. Sobre seus pés, iam se derramando, iam se quebrando. Tudo o que tocava virava catástrofe e revirava tragédia. A vida era uma peça tão pequenina ou ainda mais pequenina que ela própria (e não é que enfim descobrira alguma grandeza?) que se estilhaçava e desabava. Seus pés cobertos já do pó dos sonhos que lhe queriam tragar.
Ou quem sabe não.
Ela, a tão pouca coisa, era quase indiferente aos olhos de todos.
E foi envelhecendo, e foi enruguecendo, e foi entristecendo, e desejando tanto ser um dia, quem sabe após o fim de tudo, alguma pouca coisa. Coisa alguma.
Mas a vida sempre aponta para uma qualquer incandescência mesmo nos infinitos areais de gelo e calafrios. E teve uma idéia para isso.Amou a si própria com tamanho ardor que reverberou em estrela ascendente e efêmera alguns segundo antes do viaduto, do carro, da dor e do fim...
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Danilo, espetacular sua abordagem narrativa em torno desta tragédia paulistana. Isso é apenas um exemplo daqueles que morem e não são lembrados.
A crueldade que há em sua história perde para a sensibilidade e o manuseio poético exposto nas palavras.
Leveza que leva o leitor praticamente para a compreensão de uma morte. Sem saída!
Parabéns!
!!!!!
@_@"
► ◄
Postar um comentário